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A TRAVESSIA

Acalantadas a um canto de mim moram minhas lembranças mais minhas. Lembro-me, por exemplo, de quando deitava diante da lua e a esperava viajar pelo espaço devagar. Lembro-me, ainda, do dia em que não virei a esquina de todos os dias - não sei - fui reto. Atravessei a rua, que àquela hora ia deserta como eu. Na outra calçada alguém me vigiava os passos sem que eu soubesse. Caminhava contando passos e criando histórias, por isso me distraía. Tão distraída ia que esbarrei nos olhos de quem me olhava. Eram os olhos que iam me guiar vida a fora - mas eu ainda não sabia. Desculpei-me como se houvesse culpa em sonhar acordada. Ele me olhou por dentro, sorriu e se casou comigo naquele instante. O resto foi a história que inventamos para contar ao mundo.

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CASULO

A cara no quadro na parede da sala da casa da rua Antônio Bezerra da cidade de São Paulo no Estado de São Paulo no Brasil na América do Sul no hemisfério sul no planeta terra no sistema solar na via láctea no universo... este mísero, ínfimo, infame, faminto universo fêmea em que a cara está presa pra sempre no quadro preso pra sempre na parede presa pra sempre na casa presa pra sempre na rua que prenderam pra sempre a um nome cujo dono ela nem conheceu - nem ela nem eu. Eu que olho minha cara presa na cara presa no quadro da parede que vai, aos poucos, ficando velha como o resto todo deste universo fêmea, faminto, infame, ínfimo e mísero em que me encontro sem espaço pra sobreviver a mim e a expansão do que há dentro em mim. Em mim, não no quadro nem na parede nem na casa nem na rua, muito menos no Antônio que emprestou o nome à rua que aprisiona a casa que aprisiona a parede que aprisiona o quadro que aprisiona a cara que aprisiona eu.

DESMORONAMENTO

Ah, se eu fosse algum parnasiano Como seria bom viver! Ou fosse eu algum árcade  ou bossa-nova! tudo forma todo molde Ah, como seria doce e como seria leve! Viver de brisa como vive a brisa e de orvalho como o próprio orvalho... Mas que nada... sou mais B arroco que Tropicália, mais B yron que João Gilberto... Como do tarô a morte o enforcado, a torre,  o diabo... sou este ser assim pesado este avesso em si mesmo talhado este  des mo  ro  na  men to... um atraso, um ataque um pileque, uma ressaca... Este quase esquecimento de nomes e datas Este peso Este peso Se não fosse o peso do que sou se não fosse o peso... Ah, seria eu um poema  a flutuar parnasiano numa praia lerda num postal ... antes da faísca,  depois do Carnaval ... antes do cisto,  depois ...  bem depois do Natal

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Ah, esta luta esta labuta Cá estou num avesso de digestão a gerir palavras em vão! Ah, a crueldade do poema! A dor de cada verso A dor de saber-se assim Imperfeito assim Assim feio... Por que não calar de vez a voz? Por que insistir assim? Édipo cego sem pai sem mãe sem luz Em busca de ver com mãos e bocas a poesia que me habita e que me falta Está em mim, sombra em mim... Mas não é minha, não de mim Se a toco de leve foge, se a estupro finge-se de morta e eu, enfim Finjo-me assim De poeta sem ser.