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Mostrando postagens de julho, 2010

PONTO FINAL

Se o ponto final fosse fácil não haveria tantas vírgulas. Mas nem as reticências salvam as pontes antes do desmoronamento. Ao rio cabe apenas passar - levar um pouco de cada margem e passar - outro rio virá. Será, na verdade, o mesmo rio, só as águas é que serão outras. Mas o que importa mesmo na vida é quanta água passa debaixo da ponte antes do ponto final.

ANESTESIA

As palavras não se entregam facilmente. Elas resistem, disfarçam, fingem não me querer... Levantam do banco fugindo do toque leve dos meus dedos. As palavras dizem que não sou eu o que querem... Deve ser especial o primeiro beijo - e cada palavra calada na hora do beijo há de me custar o preço do sono não dormido. Depois, enfim, elas se entregam a mim. E com as palavras nos braços, ouço as coisas mais lindas: elas me falam do mar e me contam que já eram minhas desde o primeiro momento. Juntos - as palavras e eu - encontramos a palavra certa - aquela que nos traduz melhor: anestesia. Anestesiados - as palavras e eu. Só espero que não passe essa anestesia que nos emudece. Quero viver assim anestesiado - nessa muda anestesia - e que só os olhos tenham palavras para dizer que se querem.

SEU BEIJO E O MAR

         Creio que entendi, enfim, a metáfora:          Ela explica aquilo que não se explica - como o seu beijo - disse-me o dono do beijo. Antes de dormir, ainda sinto seu beijo me mordendo os lábios - sua língua sussurrando na minha: é como voltar do mar.          Depois de um dia inteiro na praia, antes de dormir, é como se ainda sentisse o mar inteiro a me lamber. Assim é seu beijo: ainda posso senti-lo agora - seu beijo é o mar. Só não entendo o paradoxo: afinal, seu beijo é o mar, mas, mesmo sendo o mar, é doce seu beijo.         Seu beijo é um mar doce que me afoga devagar às cinco horas da manhã e que não sai de mim.

CONTADOR DE ESTRELAS

Quando comecei a contar estrelas? Já nem sei, foi há tanto tempo. Eram tantas que as noites eram poucas. Com o tempo, passei a procurá-las,também, na companhia do sol. Hoje são poucas - algumas desistiram de mim - de algumas, eu desisti. Creio que assim são os amores. O importante é saber que um dia já fui contador de estrelas e que carrego, em algum canto escuro de mim, o restinho do brilho das mais brilhantes.

SEM PESO NEM PAUSA

Como calar meus ouvidos e mergulhar em mim se ao meu redor, o mundo faz barulho como quem geme? Pessoas arrastam pés pesados por ruas de pedras. Ao meu redor, pausas e pesos - tudo é ruído - tudo me rói. Se eu calasse os ouvidos - talvez - esquecesse quem sou. Talvez esquecessem que sou. A liberdade é muda. No vácuo dos corpos na hora do gozo só o paladar fala - vozes já não há - por isso minha sempre ânsia de gozar. Não é o prazer que me geme - é só a dor de saber que depois do gozo meus ouvidos de novo se abrirão e de novo me estuprarão outros ruídos. Quisera viver gozando eternamente- sem peso nem pausa.

OLHOS POR CAMINHOS

Meus olhos andam por caminhos avessos - às vezes - e nem sempre há retorno depois da curva. Se houver, nem por isso devo voltar, afinal, voltar é para quem pensa que o que vale é a chegada - para mim, o melhor é o ir - sempre - por isso este eterno sair de mim - este eterno ir de mim a mim - este ir - assim - sem volta, sem fim.

O TEMPO DAS PERGUNTAS

Ontem por um segundo o tempo passou devagar e deu tempo até de te ver de verdade. Só ontem. Só se sente medo quando se tem muito a viver e eu já vivi demais. Demais para te temer. Não me olhe como se eu tivesse respostas a perguntas mal feitas. Não me olhe como se eu te tivesse em mim de novo. Quando nos perdemos, perdemos o tempo das perguntas. Agora de que servem respostas que esbarram em paredes recem pintadas? No fundo são brancas. Respostas brancas não me servem mais. Quero antes os rabiscos dos primeiros beijos. Lembra? A gente brincava de medir os lábios... de amarrar as línguas...  A gente brincava de ser só a gente mesmo e essa era nossa melhor resposta.
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O VERMELHO DA FLOR

Quando o vaso quebrou - o vermelho da flor e o meu sangue vermelho fizeram amor. E a unha que ficou largada na pia me carrega inteiro num DNA. E se a flor engravidar? Nascerá um pé de mim - com espinhos - e crescerá flor de mim. E se depois a flor não quiser ser vermelha? E se for amarela a flor? Então só o DNA vai me salvar de ser pai da flor de outro pai... ou talvez o mundo simplesmente descubra que é normal ser amarelo. Vou embora sem saber se a flor engravidou - sem saber se o pai sou eu - sem saber se será amarela a flor do nosso amor - estranho amor. Só me resta estancar - apanhar os pedaços do vaso e fingir que nunca me entreguei a uma flor - que nunca fui ferido - que nunca amei.

O PÓ DO ASPIRADOR DE PÓ

O pó do aspirador de pó - digerido Num avesso de vento ao redor de mim - pó mastigado - aprisionado pó Tenho dez mil e quinhentos watts de potência aspiro pó... mastigo pó... às vezes engasgo e choro junto                        - Hora de trocar o saco de pó E se pó é só pó por que enche - por que pesa? Diga-me, pó de mim, se somos apenas pó, por que pesamos tanto? Quanto mais pó se suga mais pesado parece ser - o mundo de fora - o mundo de dentro tudo é só pó e tudo pesa O mundo inteiro cabe no pó do aspirador de pó E lá vou eu, também, ser pó no aspirador de pó

DEPOIS DO ABISMO

O olhar do olho que me olha é arrepio E o calor do calo que me cala é sangue frio... Quando Lady Macbeth, no fim do abismo, encontrou Duncan, em seus ouvidos conspirou                                - Também fui morta por ele! Mesmo ouvindo do rei que o rei de tudo sabia...                                       - Enquanto suas mãos lavavam as mãos - Lady Macbeth ousou       ainda        dizer                                                           - entre frio e calafrio                       Eu sei, majestade, eu sei... Mas faça como eu - perdoe-o... Perdoe-o! Desapareceu, então, com as mãos em carne viva - vermelhas de seu próprio sangue. Desaparece eu! Desapareceu
Escrever pra mim é mergulhar no fundo de mim. E ir mais além. Olhar de um ângulo que ninguém vé... Marli Silva