Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de 2009

METADES

Hoje me deixei possuir. Inteira Inteira não. Não inteira Hoje me deixei possuir. Só parte de mim inteira, outra parte não Só meu corpo ardendo inteiro Só meu anseio num roçar de quase beijo Só o que meus lábios tocaram sem pedir Só, a língua minha se deixou lamber Hoje me deixei possuir. Inteiro. Não inteiro. Inteiro não. Hoje me deixei possuir Só parte de mim inteiro, outra parte não. Fechei os olhos para ouvir -Abre a boca inteira E me engole inteiro. Inteiro não. Não inteira Abri. E um gosto suado de pele com pele E um cheiro molhado de corpo mordido Pedaço pelado é só o que quero Só uma parte me interessa. Uma parte Pois só a parte me possui inteira Pois só à parte me devolvo inteiro.

NÃO SER EU

Estou diante do outro que não sou eu E nada há nele que o faça ser eu Nada há Ser eu é um castigo apenas meu Estou diante do branco do pano branco Na pele do homem com pano branco E ele não sou eu Estou diante do preto dos olhos do homem Nos olhos do homem com olhos pretos E ele não sou eu Vivo diante dos que não sou eu Distante de tudo que sou eu Estou no olho que me olha Mas não me vejo lá Nem me vejo preso no olhar Que habita preso em minha face Olho outros olhos na estação E nenhum deles sou eu São olhos de olhar como os meus Mas o olhar dos olhos, Esse não é meu Não ser eu Alforria de me ver bem longe E de me escutar cantando baixinho No fim da fila depois da curva do caminho Até a voz, meu Deus, nem a voz! Vivo diante de tudo o que sou. Eu distante de todos que não sou eu

O ASSISTENTE

- Então, o senhor almeja a um cargo de assistente aqui no meu gabinete? - Sim, senhor. Quero trabaiá com o senhor aqui no Congresso Nacionar. - Muito bem. Então vamos lá. Para dizer se vou contratá-lo ou não , eu preciso saber das suas qualificações. Conhecer um pouco da sua formação acadêmica, das suas experiências, enfim, saber como o senhor poderá se encaixar no meu quadro de assistentes. - Pois não. O senhor pode apreguntá que eu arrespondo. - Então, vamos lá. Diga-me o que o senhor sabe de matemática financeira. De cálculos de juros simples e compostos, por exemplo. - Eu? - Sim, o senhor. - Num sei nada disso não. - Nada? Tudo bem. E o que o senhor sabe de relações públicas? - Nada - Nada? Relações internacionai, talvez? - Nadinha. - Bom. Então, quem sabe o senhor então poderá ser útil em relação ao textos, aos documentos oficiais do Governo. O senhor deve saber Língua Portuguesa muito bem, eu quero dizer, gramática, sim. O senhor poderia trabalhar como revisor textual, o que me d

OS FELIZES

Invejo doidamente os felizes Não por serem felizes Mas por serem felizes apesar da vida Invejo-os nas fotos felizes E em cartazes de vidas felizes Espalhados por ruas De calçadas felizes Felizes, apesar da vida Invejo-os nos comerciais De famílias felizes Com cães, gatos, peixes... Rinocerontes não Invejo mais ainda as canções de amor Especialmente as canções de amor. Os compositores Os cantores Eles me cansam, Não porque compõem Não porque cantam Mas porque não são felizes Como merecem as canções de amor As canções de amor Ah, como invejo as canções de amor! Invejo doidamente os felizes Não por serem felizes Mas por serem felizes apesar da vida Como ser feliz apesar da vida? Como ser feliz e pensar? Como ser feliz? Como?

NO FIM DO FIM

A valsa nunca tem fim Esse eterno três por quatro vai eternamente viver em mim, eu sei Em algum canto perdido há um canto perdido E uma soprano desafina na paisagem É doce sua lágrima. Ela chora Ao longe o eco faz lembrar a valsa A mesma valsa Sempre a mesma valsa Quando a bailarina do alto despenca E em um milhão de giros desmaia É a parte dela que arrepia que me diz quem sou É a parte da soprano que emudece que me diz quem sou É a valsa sem fim na esquina de seu fim que me diz quem sou Por isso insisto na valsa, na voz, na dança que me diz, enfim, assim, sem dizer quem sou eu Quem sou eu no fim do fim.

À POE

Antes era tudo um porvir. Hoje já é tarde demais. Amanhã nem sei se haverá. O tempo é ímpio. Não quero o ópio nem o ócio dos afogados. Quero o silêncio do pensamento mudo e alheio a mim. Quero o ódio dos ossos escravos da musculatura vã que me arrasta pelas calçadas ébrias de tantas noites de caladas luas e mulheres nuas. Todas as carnes, suas carnes cruas. Fatal catalepsia que me assombra as madrugadas de tontura e solidão.
A poesia morre antes do suicida