Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de 2016

SE O RELÓGIO...

Se o relógio só pode marcar um instante a cada instante... Vive, pois, de matar e desmatar instantes o relógio É como a queda d'água parada diante da própria queda ou como o paraquedas aberto depois do fim da queda É como o suicida que desiste do suicídio embaixo do trem ou a viúva que insiste no esposo depois do último palmo de terra Se o relógio só marca o agora então ele nada marca O ponteiro do segundo é um eterno atraso lento somado a um pra sempre amanhã é o intervalo entre o fôlego e o afogamento a ponte entre o nunca e o tanto faz a janela aberta pra dentro o piano sem cordas a corda no pescoço morto a pena na mão muda a derradeira palavra vã que dita é poeira no vento e muda é poesia sem ventre... é nada Se o relógio só marca o agora ele, então, marca o nada.

ANTES DA LABIRINTITE

E então ela disse-me assim: Não se gaste demais com quem  ainda está atravessando a primeira parede dos parênteses... Não se prenda demais a quem ainda está tropeçando no segundo ponto das reticências...                                                  Não Não se perca demais por entre as penas de quem ainda cruza as pernas  com cara de que entendeu os desentendimentos E não finja demais ser como os demais isso de querer tanto parecer tonto como os tontos ainda vai te causar uma labirintite.

ESTIMA

RETRATO-MUDO

Faz dias já que nem me reconheço mais cá de dentro do meu silêncio  turvo onde jaz  a palavra-porta que, aberta, é cais fechada é retrato-mudo  fadado  ao lilás da parede lilás que cerca... que nutre, mas  cega E de mim para mim fechou-se à chave  a porta de trás não a que nunca se abriu, mas só a que sequer existiu... Agora a porta escancarou o retrato-mudo mudou e a parede própria desprendeu-se - já... Agora  a fotografia revelou o que o olhar que nela está a se olhar por tanto tempo cegou: - revelou que no olhar atrás do olhar existe uma pirâmide, uma prisão um quarto vazio um assobradado E dentro um homem espelho carne assombrado por outra identidade nos olhos outro cartão postal e  digitais outras nos dedos mesmos nele, tudo é outrem tudo  ontem... tudo assombra nele tudo  sobra tudo  sombra.

AGRIDOCE

sou só um homem só que precisa da palavra nua, nau, aguda e suada... eu de alpargatas, ela em tailleur. - assim como quem anda e carece do passo: com ânsia militar e resignação - só pra não sufocar da própria respiração e da descomunal mediocridade que me faz igual ao que é igual tanto no agridoce, quanto no cordel tanto no saleiro quanto no sal.

NUNCA MAIS

Nos dias em que me chovo em mim assim... feito inundação seca feito saudade avessa fico eu feito feto sem útero feito foto sem câmera feito fonte sem água... Nos dias em que me seco em mim assim... feito afogamento em fogo feito saudade avulsa calo eu como quem cala como quem corta o próprio calo como quem caule sem folha nem raiz... Nos dias em que me perco em mim assim... vontade dá de nunca mais voltar nunca mais me habitar nunca mais mar nem cais... nunca mais .

AMANTES

De repente vi a antiga moradora daqueles olhos a me olhar. Não era a de hoje - assim distante, assim ausente. Era a velha moradora. Aquela de entorpecer estrelas à noite e de anoitecer manhãs. Mas foi tão de repente. E a antiga moradora cerrou os olhos para adormecer dentro deles e esconder-se de si e de mim. Antigas paixões - descobri - resistem. Residem em algum canto de nós. E quando o sono nos vacila ou o vinho das horas tontas nos tonteia ou o desejo de estilhaçar nos ameaça- um olho teima em brilhar e se o outro percebe é como se um resto de orgasmo terminasse de gozar anos depois. Lembrar? Esquecer? O que nos podem provocar dois olhos a piscar? Agora é só fechar de novo os olhos - dizer que tudo está bem - abraçar os que hoje nos abraçam e seguir vida afora como se nem fôssemos amantes.

EU DE VERDADE

Ontem me disfarcei de mim mesmo E saí por aí Dizendo a todo mundo Coisas que eu diria se fosse eu Falei mal de mim até cansar Inventei histórias Cantei vitórias Fingi orgasmos Ontem,  Eu fui eu de verdade pela primeira vez

O EXÍLIO DA CANÇÃO

Só de querer voltar voltei Fui sem nem saber que fui E sempre estive assim: a um instante de estar Agora que agora é tarde demais Só resta o assombro a me assombrar Tão longe, tão fundo, tão aqui e, ao mesmo tempo nunca... Mas se desequilibrou o estribilho Não faz mal... Abre ainda mais o abismo Abisma diante do próprio brilho Beija a brisa e deixa tudo suspenso no momento...   Porque só de querer voltar voltei

NU

Meus olhos nem sempre me expõem  no espelho-outro em que me vejo nu... em que de mim nem sei  quando me desnudas  de dentro pra fora  e me devora.

ESTRADA

Às vezes o olhar olha perdido  a estrada que passou  enquanto o passo apressado  adianta o passo ainda a ser dado  De nada adianta adiantar:  nem o passo nem o passado e nem a estrada.

SUSTO

Amar  precisa  ser  sempre  um  susto   ser um arrepio uma queda livre  um vão entre vãos  pois tudo é perda, senão tudo em vão tudo  é  nada

PARÁFRASE

...Aspas abertas para parafrasear pausas ... parênteses abertos para parir esquinas ... Olhos fechados para fechar fachadas E ficar a sós com minhas pausas, meus parênteses, minhas esquinas e aspas...

MÃEZINHA

Agora não há...  um pensamento Uma palavra Um gesto  meu... Que não seja só...  meio pensamento  Meia palavra  Meio gesto meu Hoje sou só meio do que fui Metade de mim  é silêncio... ausência... saudade... E a outra metade foi morar fora de mim.

EM MIM

Misturam-se em mim  o doce e o sal  o teu e o meu  o salto e o céu

OUTRO

Ser eu e,  ao mesmo tempo,  o outro: o que diz - tu...  implodir-me  momento a momento  até desmentir-me  até desmontar-me em mim  e no que silencia nu antes do amanhecer-me outro.