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CHEIRO DE SAUDADE




Desde que inventaram de falar, os homens falam de saudade. Falam com palavras, ou falam com gestos ou com um olhar somente, mas falam.
Acho que falamos tanto da saudade pra ela doer menos.
Mas então, olhamos fotos, ouvimos canções, lemos histórias.
Vamos até a varanda e podamos uma planta - só pra que ela sinta um pouco de saudade, também. Saudade da folha que perdera.
Vingança? Não.
É só necessidade de alguém pra dividir a solidão.
E a gente fala sozinho, então.
Ou fala com o cachorro, canta junto com a canção, escreve nas paredes e depois apaga.
Pinta um quadro, pinta o cabelo.
Ou então não faz nada: deita na cama e vem juntar-se ao mundo dos homens que falam de saudade.
Como eu agora, aqui, falando de saudade - da minha imensa saudade.
A chuva fina que voltou a chover lá fora vai rimando com a Ave Maria que toca mansa no rádio.
E o cheiro de talco se espalhando no quarto vai rimando com as flores de plástico que inventei pra mim - só pra tentar florir a sua ausência. Ainda vai doer muito até uma flor de verdade nascer aqui no meio das minhas flores de mentira.
Até lá vou falar de saudade, quando der saudade.

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