Pular para o conteúdo principal

CHEIRO DE SAUDADE




Desde que inventaram de falar, os homens falam de saudade. Falam com palavras, ou falam com gestos ou com um olhar somente, mas falam.
Acho que falamos tanto da saudade pra ela doer menos.
Mas então, olhamos fotos, ouvimos canções, lemos histórias.
Vamos até a varanda e podamos uma planta - só pra que ela sinta um pouco de saudade, também. Saudade da folha que perdera.
Vingança? Não.
É só necessidade de alguém pra dividir a solidão.
E a gente fala sozinho, então.
Ou fala com o cachorro, canta junto com a canção, escreve nas paredes e depois apaga.
Pinta um quadro, pinta o cabelo.
Ou então não faz nada: deita na cama e vem juntar-se ao mundo dos homens que falam de saudade.
Como eu agora, aqui, falando de saudade - da minha imensa saudade.
A chuva fina que voltou a chover lá fora vai rimando com a Ave Maria que toca mansa no rádio.
E o cheiro de talco se espalhando no quarto vai rimando com as flores de plástico que inventei pra mim - só pra tentar florir a sua ausência. Ainda vai doer muito até uma flor de verdade nascer aqui no meio das minhas flores de mentira.
Até lá vou falar de saudade, quando der saudade.

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

MORMAÇO

Não sinto falta de mim  quando me despedaço e vou Sinto que sobra espaço no que me fica quando me despeço e voo e se a palavra sair calada não espanta, apanha o silêncio e escuta vigia meu sono devagar e não me deixe nunca perder seu rastro perder seu signo no mormaço - saciado cio - do nosso olhar: altar do meu sair  sempre pra fora de mim...

JANEIRO

Quero um ano inteiro de janeiros. Quero anos inteiros só de janeiros. Que todo dia seja ano novo. Que, no céu, fogos de reveillon iluminem as noites todas dos meus dias de janeiro. De repente toda canção foi feita para nós, todas elas te cantam nossa história e me contam dos teus dias sem mim. E todo arco-íris que vejo tem uma cor a mais: o moreno da tua pele morena. Quero um ano inteiro de janeiros. Quero as estações todas misturadas no cheiro do teu corpo suado: verão de me queimar os lábios, inverno de gelar meu sangue de prazer, primavera de me trazer flores no almoço e outono de anoitecermos juntos numa estrada a cem por hora. E agora o que fazer comigo quando vais embora de mim? O que dizer aos meus lábios que só querem beijar? E o que dizer ao meu corpo em chamas voando baixo nesta cama imensa em que já não posso dormir? Quero mil anos feitos todos de janeiros e janeiros eternos só para que me conte histórias de tuas idas e vindas pelo mundo sem cor de antes de me conhecer, pa

A VOZ

Onde está sua voz para ler meus poemas? De nada me valem os poemas se não tenho voz para lê-los. Pobres poemas ófãos - eles desconfiam de seu adeus e já não querem mais rimar. Pobres poemas órfãos! Ontem enquanto me lia para mim - e eu ouvia sua voz a me contar coisas de mim - esqueci que o tempo existe e que os amores nem sempre resistem. Ouvir sua voz é assim: decifra-me enquanto me faz esquecer das coisas, do mundo e de mim. Onde está sua voz me revelando devagar? Onde está sua voz que me morde e me arrepia quando diz meu nome sem falar?  Um eco ao menos, deixe-me um eco quando gritar meu nome antes de dormir.